domingo, 4 de maio de 2014

Seis mil anos de pão: a importância do pão para a humanidade


Vítima da fome (como judeu perseguido na Segunda Guerra), Heinrich Eduard Jacob fez um retrato apurado de um dos principais alimentos da história da Humanidade

Ernani Fagundes | 29/03/2012 16h3



Há três mil anos, numa província egípcia próxima de Tebas, um grupo de operários trabalhava sob o sol forte em obras ordenadas pelo faraó Ramsés IX. Ao fim da jornada, aliviados e ansiosos, os trabalhadores esperam o salário pelo dia de labuta: três pães e duas canecas de cerveja. Mas a ração naquela tarde chegou diferente: gordura no lugar da mistura assada de farinha, água, sal e um pouco de fermento. Não deu outra: na manhã seguinte, recusaram-se a sair de casa. No registro do livro de pagamentos, a prova de uma das primeiras greves da História.


Um mês depois, a ração mais uma vez veio incompleta e os operários voltaram a cruzar os braços. Os grevistas foram protestar na capital, até serem atendidos, por ordem direta do governador. A falta de pão pode ter um duro efeito sobre qualquer patrão ou Estado - e, como se vê, há bastante tempo. Desde que ganhou espaço na dieta das famílias com base na receita inventada no Egito, por volta de 4000 a.C. Em Seis Mil Anos de Pão - A Civilização Humana através de Seu Principal Alimento, o escritor e historiador Heinrich Eduard Jacob revela a saga do pão de trigo, marcada por poucas mesas fartas e muitos períodos de fome e guerras.




Do Egito, o alimento seguiu para a Europa mediterrânea e se espalhou pelo planeta (ilustração: Vanessa Reyes)
O intelectual judeu alemão, autor de 29 livros, sobrevivente da Primeira Guerra e perseguido pelo nazismo, foi preso em Viena, em março de 1938, e teve seus bens confiscados. Ficou cativo no campo de concentração de Dachau, na Alemanha, até que um tio americano conseguisse libertá-lo, em 1939. Refugiou-se primeiro na Inglaterra e depois obteve asilo nos Estados Unidos. Lá escreveu Seis Mil Anos de Pão, publicado originalmente em 1944. Gravuras do antigo Egito são os rastros primordiais do pão. Os agricultores das margens férteis do Nilo conseguiram cultivar o trigo em safras regulares. Eles perceberam que, além de uma papa, o cereal fornecia uma massa que, levada ao forno, resultava num alimento saboroso e nutritivo. "Os cereais foram domesticados pelo homem no Egito e na Mesopotâmia na mesma época", afirma Pedro Paulo Funari, professor de arqueologia e história antiga da Unicamp, conhecedor da obra de Jacob. De acordo com o livro, o processo de levedura da massa, a fermentação, tardou algum tempo para ser dominado. Os egípcios perceberam que, se deixassem a massa "descansar" antes de assá-la, isso a fazia crescer e, se parte dela fosse acrescentada a outra massa, ela a faria crescer mais. "Tão logo isso aconteceu, os egípcios passaram a comer o pão assado com frutas como figos e tâmaras e, mais tarde, com azeite ou azeitonas, quando estabeleceram contatos com outros povos do Mediterrâneo, como os gregos", diz Funari.


"Não foi preciso muito tempo para que houvesse 50 variedades de pão. Assado, ele não tinha semelhança com nenhum dos ingredientes", escreve Jacob.


Até o fim do Novo Império (de 1550 a 1070 a.C.), os egípcios viviam quase isolados entre os desertos da Líbia, do Sinai e da Núbia (no atual Sudão). Nessa época, o pão já tinha o status de moeda. Esse isolamento foi rompido com as invasões dos hicsos, um povo de origem semita, e pelas guerras com os hititas (que habitavam a região da Turquia), o que gerou uma nova dinâmica para a cultura do trigo.


Rota


Os egípcios passaram a exportar seu excedente de produção para outros povos do Mediterrâneo pelas mãos de comerciantes fenícios. Foi dessa forma que os gregos (e toda a Europa, em seguida) conheceram o trigo e a arte de fermentar o pão.


Antes disso, os gregos comiam uma espécie de broa de cevada e uma bolacha de centeio. A chegada do trigo reservou ao cereal importado um papel de destaque em cerimônias ao culto de Deméter, "a mãe que faz crescer o povo" e de Dionísio, incorporado pelos romanos como Baco: o casamento perfeito entre pão e vinho.


Os judeus, sobretudo, atribuíram um significado sagrado a esse alimento - a Páscoa judaica tem raízes na comemoração da saída do Egito. No capítulo 13 do Êxodo, Moisés diz: "Recordai-vos deste dia em que saístes do Egito, da casa de servidão. Não se comerá pão fermentado. (...) Durante sete dias comer-se-ão pães ázimos, e no sétimo dia haverá uma festa em honra ao Senhor". Ele também proibiu que, nesse período, eles mantivessem em casa qualquer produto fermentado.


Historiadores interpretam a ordem para consumir o pão ázimo (sem fermento) como uma forma de diferenciação do pão egípcio. Jacob, porém, oferece outra hipótese e cita o mesmo costume de diversos povos nas oferendas às divindades. Ele lembra, por exemplo, que os sacerdotes de Júpiter, o deus supremo para os romanos, eram proibidos de usar farinam fermento imbutam, ou seja, farinha embebida em fermento.


O que civilizações tão diferentes tinham em comum? Consideravam o fermento "algo podre" e "impuro" para agradar aos deuses. O hábito de tornar alimentos sagrados era comum a vários povos da Antiguidade. Mais de mil anos depois da saída de Moisés do Egito, quando os judeus passavam fome para atender aos tributos romanos, Jesus Cristo repartiu o pão da Páscoa (em 27 d.C.) e o consagrou para bilhões de seguidores no futuro. Distribuiu os pedaços aos apóstolos como o "pão da vida", a transformação do alimento em sua própria carne.


Pão e circo


"Foi nesse mundo do Império Romano que apareceu Jesus Cristo. Era um mundo de carência, de verdadeira fome, um mundo em que especuladores retinham os cereais e no qual o Estado e o imperador se serviam do pão para fins políticos, dando alimento a quem apoiasse o seu poder", diz o autor, referindo-se ainda à prática dos governantes de oferecer trigo e diversão, como as disputas entre gladiadores. Para alimentar a plebe, sucessivos dirigentes canalizaram todo o trigo do Egito e das províncias para Roma, deixando a população mediterrânea sem pão.


Os romanos herdaram dos gregos o gosto pelo pão e a adoração a Deméter, batizada como Ceres e incluída nos mistérios de Elêusis, único culto que concorria seriamente com o cristianismo nascente da época. Tão importantes que eram no cotidiano romano, o pão e o azeite tinham preço e estoque controlados pelo Estado. Entre tipos e formatos variados, como o panis testuatius, cozido num vaso de barro, o pão de Parta era considerado uma especialidade leve - a massa era deixada dentro da água durante muito tempo e só depois cozida. Registros apontam que, em 72 a.C., 40 mil romanos recebiam o cereal gratuitamente do Estado. Com Júlio César, esse número passou para 200 mil e seguiu crescendo. Mas toda essa estrutura ruiu entre os séculos 3 e 4, quando as províncias não puderam mais suportar o peso de Roma e sua estrutura corrupta e inflacionada. E os invasores bárbaros trouxeram um novo gosto alimentar: sopas de legumes, aveia e centeio, que levaram a civilização ocidental para a Idade Média do sabor. À época, boa parte da população adulta era desdentada e a sopa vinha bem a calhar.


Jacob afirma que, por cerca de mil anos, até quase o fim do medievo, os europeus comeram mal. Nas crises de abastecimento, até cascas de árvore eram misturadas a grãos de trigo nas moendas do cereal. A partir daí, o historiador conta como a humanidade teve de se virar em diferentes partes do planeta para alimentar a população. O milho e a batata encontradas na América pelos colonizadores se espalharam para a Europa, a China e a Arábia. Mas, segundo Jacob, a preferência pelo trigo parecia imbatível. "O pão era rico em calorias: 2,4 mil calorias por quilo." Além disso, era um alimento barato.
O livro é um clássico não apenas sobre o trigo mas também sobre a agricultura e as técnicas de produção e conservação de alimentos - essenciais ao avanço das civilizações. E, claro, cita a importância de exércitos bem alimentados em todas as guerras. Napoleão, por exemplo, alimentava suas tropas com "um pão fabricado com duas partes de trigo e uma de centeio", enquanto o restante da população francesa comia uma mistura de farelo de trigo que não matava a fome. Na Revolução Francesa, durante períodos de escassez do cereal, as mulheres foram ao Palácio de Versalhes e à Convenção de Paris exigir das autoridades o essencial. Conseguiram, em 1793, fazer valer uma lei (mesmo que por pouco tempo) que distribuía o pão gratuitamente. Só assim diminuíram os gritos nas ruas: "Queremos pão!" O mesmo apelo dos grevistas egípcios e de qualquer família (faminta ou não) até hoje.




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