quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Atleta relembra maratona em deserto: "bebi urina e sangue de morcego para sobreviver"


Prosperi tinha 39 anos e já havia se aposentado como atleta profissional quando resolveu se dedicar à maratona "extrema"
Da Redação (redacao@correio24horas.com.br)


Um italiano recontou sua experiência na Marathon des Sables, de 1994 - a corrida é considerada a mais difícil do mundo. São seis dias, em total de 250 km, pelo Saara. O ex-pentatleta olímpico Mauro Prosperi ficou por 10 dias perdido no deserto e precisou beber sangue de morcego para sobreviver. Ele fez seu relato à BBC Brasil. 

Prosperi tinha 39 anos e já havia se aposentado como atleta profissional quando resolveu se dedicar à maratona "extrema". Ele disse se sentir atraído pelos cenários diferentes e bonitos, como montanhas e geleiras. Ele disse que um amigo o alertou para a Marathon des Sables e ele ficou imediatamente interessado. "Adoro um desafio, então comecei a treinar imediatamente, correndo 40 km por dia, reduzindo a quantidade de água que eu bebia para me acostumar com a desidratação", contou.




Mauro voltou à maratona 4 anos depois
(Foto: Divulgação)


A maratona é tão extrema que o participante tem que assinar um formulário reconhecendo que sabe os riscos e onde informa para onde quer que enviem o corpo em caso de morte. Isso deixou a mulher de Prosperi, com quem ele tem três filhos, muito preocupada. "Atualmente a Marathon des Sables é uma muito diferente, com até 1.300 participantes", explica ele. Na época, eram apenas 80. "Na maior parte do tempo eu estava sozinho".

Prosperi disse que os problemas começaram no quarto dia, quando ele estava só e foi surpreendido por uma forte tempestade de areia. "O vento chegou com uma fúria enorme. Fui engolido por um paredão amarelo de areia. Eu não conseguia enxergar nem respirar. A areia ricocheteava no meu rosto - era como uma tempestade de agulhas". Ele precisou enrolar um lenço no rosto para evitar ferimentos e ficou agachado em um lugar esperando a tempestade passar, o que só aconteceu 8 horas depois. 

O corredor dormiu nas dunas e ao acordar percebeu que a paisagem estava totalmente diferente

Foram oito horas. Quando o vento parou, tudo estava escuro, então eu dormi nas dunas. Eu estava chateado com a corrida, porque, até então, eu estava em quarto lugar. Pensei: 'Tudo bem, não posso mais ganhar, mas ainda consigo fazer um bom tempo. Amanhã de manhã eu vou acordar muito cedo e tentar chegar ao fim'.

Os competidores têm 36 horas para terminar essa fase da corrida - mais tempo que isso e você é desclassificado - então ainda havia uma chance. O que eu não poderia imaginar era o quanto a tempestade iria mudar tudo ao meu redor.

Perdido no deserto
Acordei muito cedo em uma paisagem completamente diferente e ele estava perdido. "Quando percebi que estava perdido, a primeira coisa que fiz foi urinar em minha garrafa d'água extra, porque quando você ainda está bem hidratado sua urina é a mais clara e mais potável", relembra. Ele disse que apesar da precaução, não estava preocupado e esperava ser logo encontrado pelos organizadores.

Prosperi tinha faca, bússola, comida e saco de dormir, mas diz que a água era o maior problema. "Tínhamos água fresca nos postos de controle, mas quando a tempestade me atingiu eu só tinha metade de uma garrafa de água sobrando". Por conta disso, ele tentava só caminhara quando não estava muito quente - no começo da manhã e à noite - e ficar em algum abrigo durante o dia.

Um helicóptero chegou a passar sobrevoando a área onde o corredor estava, mas ele não conseguiu chamar atenção com o sinalizador que tinha. "Desde 1995, por causa da minha experiência, os corredores foram equipados com o tipo de sinalizadores usados no mar - quem corre não gosta, porque eles pesam 500g -, mas naquele momento os sinalizadores que tínhamos eram muito pequenos, não maiores que uma caneta".

Dois dias depois, Prosperi chegou a um santuário muçulmano chamado de marabuto, onde beduínos param durante suas travessias pelo deserto. Ele usou o local como abrigo. De lá, ele viu morcegos em uma torre e não teve dúvidas. "Peguei um punhado deles, cortei suas cabeças, tirei suas entranhas com uma faca, e então bebi o seu sangue. Depois comi pelo menos 20 deles, crus".

Dias depois, Prosperi ouviu barulho de um avião e fez um incêndio para tentar chamar atenção, mas outra tempestade de areia começou, atrapalhando o corredor. Ele então ficou deprimido, achando que morreria uma morte lenta, e começou a pensar em suicídio. "Escrevi um bilhete para minha mulher com um pedaço de carvão e depois cortei meus pulsos. Deitei-me e esperei para morrer, mas meu sangue havia engrossado e não fluía".

Prosperi não morreu e encarou isso como um sinal para seguir adiante. "Segui o conselho que um tuareg (membro de um dos povos nômades do deserto) tinha dado para todos antes de começarmos a corrida: 'Se você está perdido, siga as nuvens que você vê no horizonte ao amanhecer, que é onde você vai encontrar vida. Durante o dia, elas vão desaparecer, mas defina sua bússola e continue nessa direção", relata.

Ele caminhou por dias, matando e comendo cobras e lagartos crus, perdendo peso. "Estava tão desidratado que não podia mais urinar". Um dia ele encontrou uma pastora tuareg e então um acampamento. De lá foi socorrido até uma base militar. O corredor descobriu que estava na Argélia - um desvio de percurso de 291 km.

"Fui pesado e descobri que tinha perdido 16kg - estava com apenas 45kg. Tive danos à vista e ao fígado, mas meus rins estavam bem. Durante meses pude apenas tomar sopa e outros líquidos. Foram precisos dois anos para me recuperar".

Mesmo assim, Prosperi voltou a correr a maratona, quatro anos depois. "As pessoas me perguntam por que voltei, mas quando começo uma coisa preciso terminá-la", explica.

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